Março de 2020: a pandemia de Covid-19 vira de cabeça pra baixo a rotina dos manauaras. Em um dos shoppings mais famosos da capital, um jovem de 20 anos ouve do próprio chefe que as restrições sanitárias impostas para o controle da doença obrigariam o centro de compras a fechar as portas e que cortes seriam necessários.
Incluso na lista de demissões, o jovem passou a ter a incerteza como companhia. O tempo foi passando, as coisas só piorando, e quando ele se deu conta, já faltava o básico em casa. E o que era pra ser passageiro, se tornou desesperador quando a fome bateu à porta. Era preciso agir, e rápido.
O jovem em questão era Matheus Sant, hoje com 22 anos e dono de um salão de beleza numa das áreas mais nobres de Manaus. Por trás de um cabelo colorido e roupas de vanguarda, uma mente inquieta que teve ousadia o suficiente para apostar num negócio nichado para tentar superar a época mais difícil dos últimos 100 anos.
A convite de uma tia, Matheus utilizou o conhecimento que tem para tocar um salão de beleza que estava fechado também por causa da pandemia, na Zona Sul, assim que as restrições ficaram um pouco mais brandas.
No começo, atendia apenas aos amigos, que frequentavam o espaço para prestigiá-lo, mas acabou mudando de vida graças ao poder da internet e usou o empreendedorismo para mudar também a vida de outras pessoas, focando em atender pessoas com cabelos cacheados e o público LGBTQIAP+.
“Tive a ideia de fazer um post no Twitter para divulgar o meu trabalho e, assim, pedir para que os meus amigos também divulgassem. Como eu já atendia majoritariamente um público de cabelos cacheados e LGBTQIAP+, meu post foi um convite para que conhecessem o espaço”, conta Matheus.
“Só que a postagem viralizou e começou a dar tanta gente que eu tive que me mudar de lá e abrir um salão maior, no Vieiralves, um bairro nobre de Manaus”, completa o proprietário do Matheus Sant Studio.
Com o sucesso repentino, Matheus viu uma oportunidade para ajudar a diminuir a dificuldade que pessoas LGBTQIAP+ têm para entrar no mercado de trabalho, atuando na transformação imediata de sua bolha.
De acordo com um levantamento feito pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), em 2020, 9 em cada dez mulheres transgênero no Brasil têm como única fonte de renda a prostituição, e apenas 4% possui emprego formal.
“Infelizmente, a gente sabe o preconceito e a discriminação são muito grandes no mercado de trabalho e isso é algo que não faz sentido. Essas pessoas acabam sendo marginalizadas por causa da ignorância. Neste momento, eu lidero uma equipe com sete colaboradores, todos LGBTQIAP+. Estou tentando fazer a diferença”, conta.
De volta para casa (dos pais)
No filme “O Diabo Veste Prada” (2006), a protagonista, que é uma jovem jornalista, tem que lidar com o temperamento difícil e uma exigência desumana de sua chefe numa das revistas mais populares dos Estados Unidos.
Ao longo da estória, ela precisa de desdobrar para atender a tudo que a superior demanda, incluindo alguns caprichos que sequer fazem parte de sua função. No final, ela acaba sendo reconhecida após muito esforço e enxerga que tudo é aprendizado.
Sem final feliz garantido, a jornalista Jamile Galvão (30) resolveu jogar tudo para o alto em 2016, após viver uma experiência semelhante a do filme. Sobrecarregada, nem mesmo o bom salário que recebia e o fato de ter uma filha com menos de um ano de idade foram capazes de segurá-la em um emprego onde desenvolveu ansiedade e depressão, tamanhas eram as exigências da chefia.
Dona da própria história, ela resolveu abrir o próprio negócio e junto com duas amigas, abriu uma empresa de comunicação integrada, atendendo empresas de pequeno e médio porte. Em carreira solo desde 2018, ela viu sua carteira de clientes esvaziar com a chegada da pandemia. Para não fechar ou precisar demitir qualquer funcionário, ela conta que cortou na própria carne.
“A empresa é bem jovem, então a gente, que já matava um leão por dia, precisou passar a matar quatro ou cinco, durante a pandemia. Meu objetivo era fazer a empresa chegar viva no final dessa loucura toda e eu topei fazer uma coisa que eu achei que nunca faria, que era voltar para a casa dos meus pais”, relata.
“Morando alugado, eu queria cortar o máximo de despesas então essa foi uma solução pouco ortodoxa que eu resolvi abraçar para poder manter a empresa. Agora imagina: eu com quase 30 anos, marido, filha, voltando pra casa dos meus pais. Era um passo pra trás para que a empresa pudesse continuar caminhando”, detalhou a empresária.
Deu certo. Em três meses ela conseguiu um alívio financeiro que possibilitou planejar uma retomada. Tal qual Jack e Rose se segurando na proa do Titanic enquanto o navio afundava na vertical no filme de James Cameron (1997), Jamile conseguiu passar a pandemia inteira sem demitir ninguém para cortar custos, e manteve seus cinco colaboradores.
“Tem a questão de manter a empresa funcionando para que pudéssemos nos reerguer quando tudo voltasse, mas também tem o fato de que emprego, durante a pandemia, também estava muito mais difícil. De uma certa forma, eu me sentia responsável por essas pessoas, que estiveram comigo em momentos muito difíceis e aceitaram inclusive uma redução no salário”.
“Acabamos nos tornando de fato uma família, então o sacrifício que eles fizeram eu tinha que fazer também. Quando os clientes começaram a voltar ou apareceram novos, a prioridade foi restaurar o valor que eles recebiam, e aos poucos fomos nos levantando, e hoje trabalhamos com expectativa de crescimento”, pontuou.
Virada de chave
Enquanto muitos temiam perder o emprego durante a pandemia, a contadora Gabriela Fonteles, à época com 30 anos, resolveu jogar tudo pro alto e viver o sonho de ter o próprio negócio, uma empresa de contabilidade. Sim, no meio da pandemia. Alguns poderiam achar loucura, mas para ela, a verdadeira loucura era arriscar a vida da família por um emprego com o qual ela já não se identificava. Com um plano, seu projeto enfim pôde sair do papel.
Com 12 anos de formada em contabilidade, ela conta que nunca se encaixou trabalhando num modelo tradicional, com CLT, por uma questão de perfil. Depois de trabalhar em uma multinacional, ela engravidou e teve ainda mais certeza que deveria investir num negócio próprio, agora para acompanhar de maneira mais flexível o crescimento do filho.
Resolveu, em 2015, investir em cosméticos importados, o que deu muito certo por dois anos, até o dólar disparar esse modelo de negócio saturar. Com as vendas caindo, Gabriela acabou sendo surpreendida por uma boa proposta do mercado para atuar, bem posicionada, numa “incubadora” de startups, dentro de uma universidade. Acabou, pela atratividade da vaga e pelo desafio, aceitando.
A virada de chave veio nos primeiros meses de pandemia, quando a empresa começou a exigir a presença dela para as atividades, mesmo quando o isolamento social era a única arma que se tinha para combater a disseminação da Covid. Botando a vida da família em primeiro lugar, ela deu andamento ao plano que tinha ter o próprio negócio, pagou o preço por isso, mas não se arrependeu.
“A empresa começou a exigir minha presença em atividades enquanto ninguém sabia direito como lidar com a pandemia e a única forma de lutar contra o vírus. Isso ia contra o que eu acredito e eu só pensava no meu filho, que é asmático, e no meu marido, que é hipertenso. Sentia que eu estava arriscando a minha vida e da minha família por um emprego que nem era o que realmente eu queria pra minha vida”, conta Gabriela.
“Em maio de 2020, eu virei a chave e comecei a trabalhar na minha empresa. A adaptação não foi fácil, tivemos que descer alguns degraus na qualidade de vida, mas eu sabia que valeria à pena porque estava trabalhando com algo que eu acredito”, reitera.
Gabriela planejava ter, dois anos após iniciar a empresa, uma carteira com 10 clientes. Atualmente, ela tem 14 e seu empreendimento emprega mais duas pessoas.
Tem hora certa para empreender?
O contador Ailton Guimarães, que também empreende e é especialista em abertura e gestão contábil de empresas, explica que os casos de Matheus, Jamile e Gabriela são comuns no Brasil e destaca um ponto importante que todo têm em comum: não apenas a ‘hora certa’ para empreender não existe, como também esperar por um momento em que todas as condições serão favoráveis para abrir um negócio só vai atrasar esse processo, assim como não vale a pena estagna-lo num momento de extrema dificuldade.
“O timing para entrar na jornada empreendedora varia de pessoa para pessoa, mas costumo falar que o momento certo é quando você enxerga uma oportunidade de negócio, faz a pesquisa de mercado e alcança o mínimo de conhecimento sobre o nicho desejado”, explica o contador.
“Sempre ressalto que não se deve esperar que todas as condições estejam favoráveis, pois normalmente esse momento não chega. Também não vale a pena parar um negócio com o objetivo de retomá-lo mais à frente, mesmo num momento de exceção. Então, para empreender, é necessário ter coragem, ousadia e resiliência”, destaca.
Ele lembra que a pandemia acabou forçando muita gente a tomar o caminho do empreendedorismo ou mesmo adiantar planos futuros por questão de sobrevivência e destaca a importância de manter os pequenos negócios para a economia.
“Muitas pessoas passam a vida toda planejando empreender e nunca o fazem até que algo o joga nessa direção, como ocorreu no auge da pandemia, onde muitas pessoas perderam a segurança do emprego e viram obrigadas a empreender para garantir o sustento da família. Isso acabou movimentando a economia no sentido de gerar vagas que o mercado com empresas maiores fechou. As pessoas que conseguiram essas vagas, quando empregadas, são pagadoras de impostos, consumidoras, ajudaram a economia a continuar girando e ajudam agora no crescimento do país”, completa.
Número de pequenos negócios aumentou
Não à toa, o número de abertura de empresas nos últimos dois anos, que já vinha em crescimento antes da pandemia, continuou batendo recordes. Somente em 2021, de acordo com dados do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e do Mapa de Empresas, do Ministério da Economia, ao menos 3,9 milhões de novos empreendimentos foram abertos no Brasil.
O número representa um crescimento de 19,8% em relação a 2020, que por sua vez havia superado 2019, o último ano antes do surgimento da Covid, em 9%. Se a comparação for entre os dados atuais e os registrados em 2018, por exemplo, fica ainda mais fácil entender o boom de novas empresas. Naquele ano, cerca de 2,5 milhões de Cadastros Nacionais de Pessoas Jurídicas (CNPJ) foram criados, número que aumentou 53,9% apenas dois anos depois.
De acordo com dados do Sebrae, em Manaus, são mais de 100 mil pequenos negócios nas mais diversas áreas de atuação. O crescimento de MEIs, por exemplo, deu um salto gigantesco desde 2018, segundo levantamento feito pela entidade em parceria com o Prospecta Online, saindo de 25 mil micro e pequenos empreendimentos para os atuais 103,4 mil no acumulado, um aumento de incríveis 312% em menos de quatro anos.
Algo que acabou facilitando uma explosão de novos empreendimentos foi a diminuição da burocracia, abrindo espaço para negócios que transformam a realidade de pequenos nichos e que quando somados pesam positivamente para a economia do país.
Para Ailton Guimarães, houve um processo de simplificação na formalização de empresas, tornando o registro menos burocrático e mais econômico, inclusive com a dispensa de alvará, entre outras vantagens, como iniciar a atividade econômica mesmo antes da formalização.
“O Brasil precisa cuidar dos pequenos negócios. Eles mudam realidades em locais onde o Estado tem mais dificuldade de chegar, fora que estamos falando de um setor que representa 27% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. Os pequenos negócios terão um papel fundamental na retomada da economia no cenário pós-pandemia”, ressalta o contador.