Uma investigação do “The New York Times” sobre a rápida expansão da indústria frigorífica no Brasil identificou lacunas em seus sistemas de monitoramento que permitem que peles cruas de animais criados em terras desmatadas ilegalmente na Amazônia passem sem detecção por curtumes do Brasil e sigam para compradores do mundo todo. A reportagem é de Manuela Andreoni, Hiroko Tabuchi e Albert Sun, e você pode conferi-la na íntegra aqui.
De acordo com o levantamento, fazendeiros adotam a prática de vender gado engordado a um intermediário forjando registros que mostram, falsamente, que seus animais vêm de uma fazenda legal, mesmo desmatando ilegalmente a floresta na Amazônia.
Negócio
O negócio, que tem como pilares a falsificação de documentos e o avanço irresponsável do desmatamento em áreas protegidas, como a do Jaci-Paraná, em Rondônia, onde operam mais de 600 fazendas, vende não apenas carne, mas toneladas de couro por ano para grandes empresas nos Estados Unidos e em outros países no mundo inteiro.
O Times traz também que comunidades tradicionais estão sendo expulsas por fazendeiros que querem terras para a criação de gado. Na última década, eles aumentaram significativamente sua presença na reserva e, hoje, cerca de 56% dela foi desmatada, de acordo com dados compilados pela Reserva Extrativista Jaci-Paraná.
A investigação possibilitou o rastreamento do couro de fazendas ilegais na Amazônia até instalações operadas pelos três maiores frigoríficos do Brasil – JBS, Marfrig e Minerva – e daí para os curtumes que eles abastecem.
Ilegalidade
Aidee Maria Moser, procuradora aposentada de Rondônia, que passou quase duas décadas lutando contra a pecuária ilegal na reserva Jaci-Paraná, foi ouvida pela reportagem e disse que a prática de vender animais criados na reserva para intermediários indica a intenção de ocultar sua origem.
“É uma forma de dar uma aparência de legalidade ao gado”, disse ela, “para que os frigoríficos neguem que haja algo ilegal”.
O avanço em terras indígenas
Uma análise mostrou que, entre as fornecedoras da JBS, fazendas que cobrem cerca de 6500 quilômetros quadrados se sobrepõem significativamente a terras indígenas, áreas de conservação ou regiões que foram desmatadas após 2008, quando se implementaram as leis que regulamentam o desmatamento no Brasil.
A metodologia e os resultados foram examinados e verificados por uma equipe de pesquisadores e acadêmicos independentes que estudam o uso do solo na Amazônia brasileira.
A relação com o desmatamento
O desmatamento da Amazônia aumentou nos últimos anos, à medida que os fazendeiros corriam para atender à crescente demanda por carne bovina, especialmente da China. Representantes da indústria do couro afirmam que, enquanto houver demanda por carne bovina, eles simplesmente usarão peles cruas que, de outra forma, seriam enviadas para aterros sanitários.
Embora a maioria das fazendas na região amazônica não esteja ligada ao desmatamento ilegal, as descobertas mostram como o couro ilegal está entrando na cadeia de abastecimento global, contornando um sistema que os próprios frigoríficos e empresas de couro criaram nos últimos anos para tentar mostrar que seu gado vem apenas de fazendas legítimas.
Em resposta a perguntas detalhadas, JBS, Marfrig e Minerva disseram não saber que o gado da reserva Jaci-Paraná estava entrando em suas cadeias de abastecimento.
As três empresas disseram que têm sistemas para monitorar fazendas que abastecem diretamente seus frigoríficos e que excluem fazendas que não cumprem as leis ambientais. Mas todas reconheceram que não conseguem rastrear fornecedores indireto.
Em Jaci-Paraná, a demanda global por couro está ajudando a sustentar um rebanho crescente de 120 mil bovinos onde antes havia floresta.
Uma análise dos dados do governo sobre a movimentação de gado em Jaci-Paraná e áreas próximas entre 2018 e 2021 identificou 124 transações que mostram sinais de lavagem de gado, dizem os especialistas. As transações mostram que pelo menos 5.600 cabeças de gado foram transferidas das fazendas da reserva para intermediários que, no mesmo dia, venderam gado para os três grandes frigoríficos.
Batalha judicial
Em maio deste ano, fazendeiros ilegais em Jaci-Paraná conquistaram uma importante vitória. O governador de Rondônia sancionou uma medida que reduziu o tamanho da reserva em 90%.
A lei, que os promotores estão contestando na Justiça, abre caminho para que fazendeiros de terras desmatadas ilegalmente legalizem seus negócios. Os críticos da lei disseram que ela poderia abrir um precedente para mais desmatamento em outras reservas protegidas.
Nesta segunda-feira (22), o Tribunal de Justiça de Rondônia considerou a lei inconstitucional.