Apressada, ela chega ao condomínio e se depara com o conserto do elevador de serviço. Pensou em subir pelas escadas, mas o sétimo andar era longe demais para o pequeno de cinco anos. Ela estava com o filho – a avó costuma ficar com a criança pelas manhãs, mas tinha uma consulta médica aquele dia. Então, ela toma coragem e entra no elevador social.
“É bem menor que o meu, mas tem espelho, é mais bonito e tem um ar de ventilação fria”, descreve “ela”, uma empregada doméstica que trabalha em condomínios residenciais localizados no bairro da Ponta Negra, Zona Oeste de Manaus, e que o Manaus 360º decidiu não identificar para evitar represálias à entrevistada.
Ela diz que, naquele dia, teve medo do contratante flagrá-la saído do elevador “errado”. “O patrão é enjoado em relação a isso. A patroa não, ela é de boa. Até entendeu o imprevisto com meu filho”, comenta. “No começo, me chateava eu não poder usar o elevador social. Não conseguia ver problema nenhum nisso. Mas hoje prefiro usar o de serviço para não chamar a atenção. Funcionário é funcionário! Com o tempo a gente aprende a diferenciar as coisas”, reflete ela.
Elevador de serviço é herança da escravidão
A empregada pode até não se perguntar mais qual o problema de ela pegar o elevador social, mas o sociólogo e cientista político, Luiz Antônio Nascimento, fala que a “cena” escancara um problema histórico: “casa branca e senzala é uma herança da escravidão que o Brasil ainda carrega”. “Toda a sociedade brasileira foi forjada no escravismo. E isso não foi do dia para noite. Foram trezentos anos. Assim, toda estrutura social foi forjada no racismo, na exploração e na discriminação das pessoas negras e pobres”, explica.
Nascimento acredita que basta olhar o passado do Brasil para saber o porquê da arquitetura e da engenharia dos condomínios se adaptarem à lógica escravista. “Sempre se distinguiu os espaços onde seria tolerado a presença de pobres. É mais ou menos isso que a gente pode pensar dos elevadores sociais e de serviço. Não tem nenhuma outra explicação. É o que a gente chama de racismo estrutural”, ensina.
Brasil muda a estrutura condomínios em Portugal
Essa dependência da separação entre o espaço dos patrões e o das empregadas domésticas está tão impregnada na elite do Brasil que mexeu com as estruturas de Portugal. Isso porque, em 2017, brasileiros compraram um terço de imóveis de Lisboa, como informou a coluna do jornalista Ancelmo Góis, no O Globo. A publicação conta que a liderança verde e amarela no ranking de vendas português exigiu adaptações nos apartamentos.
Quarto dos fundos (quartinho da empregada), área de serviço e tanque para lavar roupas tiveram que fazer parte da configuração dos apartamentos em Portugal. Além disso, para ganhar o coração do consumidor brasileiro, novos condomínios portugueses passaram a contar com entrada de serviço e elevador de serviço.
De olho na história, a gente sabe que os portugueses não têm condições de reclamar quando o brasileiro invade a terra deles e ainda faz imposições culturais. Entretanto, o fato de as empreiteiras além-mar precisarem fazer tamanhas mudanças para receber os ricos do Brasil, marca bem quem não quer “mudar”. Por isso, as próximas empregadas domésticas do Brasil, assim como “ela”, provavelmente vão se conformar com o elevador de serviço pelas próximas décadas, calcula o sociólogo.
“Acho pouco provável que nos próximos cinquenta anos esses elevadores de serviços sejam eliminados porque essa elite, filha dos senhores escravos, se sentem confortáveis em edifícios com elevador de serviço”, opina Luiz Antônio Nascimento.
O elevador de serviço é necessário
O eletricista predial e refrigerista, Bruno Santos, entende o elevador de serviço como um meio de locomoção necessário para ele. “Não gosto de entrar no elevador social porque posso machucar alguém com as minhas ferramentas: escada, chave de fenda. Às vezes entro com ar-condicionado, se bater no espelho do elevador social e quebrar vai ser um prejuízo”, defende.
Somente dez estados do Brasil têm lei específica para evitar o preconceito por meio do elevador de serviço. Entre eles, está São Paulo, que aprovou em 1996, a Lei nº 11.995. Segundo a regra, o elevador de serviço é “destinado ao transporte de animais, mudanças, bens de grande porte e banhistas, estes últimos pela peculiaridade de estarem molhados ou estarem utilizando trajes de banho”.
O que diz a lei contra o preconceito
Na época em que São Paulo discutia a proposta de lei sobre os elevadores de serviço, a atriz Carolina Ferraz, marcada pela personagem que grita “eu sou rica!”, classificou o projeto como “idiota”. “Não me sinto menor em esperar 30 ou 60 minutos para ser atendida por um diretor da TV Globo, enquanto outras pessoas passam na minha frente. Essas pessoas que furam a fila devem ser mais importantes que eu”, comparou a então global.
O Brasil não tem uma lei dedicada ao uso do elevador de serviço, mas a Constituição Federal de 1988 diz, no artigo 5º, diz “que todos são iguais perante a lei”. E proíbe distinção de qualquer natureza, “não devendo, portanto, haver tratamento discriminatório em virtude de raça, gênero ou nível social”.
Entretanto, a mesma Constituição também diz que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”. Ainda assim, todos os dias, jornalistas deixam de receber respostas da imprensa oficial de todas as esferas de Poder.
A marca da escravidão no Brasil é real
Fora do papel, a realidade de muitas empregas domésticas está distante do respeito do Brasil que admite o uso do elevador de serviço para cometer a discriminação. Tanto é que, naquele mesmo dia, no fim do expediente, “ela” viu que o elevador de serviço ainda estava indisponível. A descida podia ser mais fácil para a criança de cinco anos, mas ela pensou que naquele dia podia “ousar” ao pegar o elevador social de novo. Dessa vez, o filho se interessou pelo vídeo que outra criança via no celular e se aproximou do “coleguinha”. Imediatamente, a senhora que o acompanhava ordenou que o “intruso” se afastasse.
“Foi como se dissesse ‘passa’ para um cachorro que rosna. A última vez que vi alguém com àquela expressão foi quando eu disse para a patroa que curso o ensino superior. Pensei em reagir para proteger meu filho, mas a sobrevivência falou mais alto e resolvi ficar na minha”, confessa ela.